2030 e o combate à pobreza em Portugal

A pobreza é uma situação alarmante, intolerável e uma grave ameaça aos direitos humanos fundamentais. Onde estivemos, onde estamos e onde queremos estar?
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2030 e o combate à pobreza em Portugal

December 13th 2021 
By Maria João Ferreira
Stone Soup Consultant

Já muito se escreveu, estudou, discutiu e legislou sobre a pobreza. As suas causas e efeitos têm sido debatidos à escala mundial, reconhecidamente como uma das grandes preocupações dos países, governos, instituições e cidadãos e um preocupante problema estrutural a combater. As medidas de combate à pobreza e até o seu conceito atravessaram diversas fases de desenvolvimento, procurando dar resposta aos problemas e crises emergentes, mas também à evolução da própria sociedade, à sua sensibilização e ao reconhecimento de que esta é uma situação alarmante, intolerável e uma grave ameaça aos direitos humanos fundamentais. Onde estivemos, onde estamos e onde queremos estar?

Até à data já muitos recursos foram aplicados para erradicar a pobreza no Mundo, na Europa, em Portugal e cabe-nos aprender com as boas práticas, mas também com os erros do passado, de modo a que não reincidam, quebrando com os ciclos e os padrões menos eficazes, impactantes e sustentáveis.

A pobreza. Falámos todos sempre do mesmo?

Atualmente existe uma maior harmonização e definição de conceitos, métodos e estatísticas. Mas não há uma única definição de pobreza que seja universalmente aceite.

Não temos dúvida que a pobreza é um problema estrutural, transversal e global, comprometendo em geral o desenvolvimento dos países e em particular o desenvolvimento humano.  É parte integrante das agendas políticas nacionais e internacionais para encontrarem estratégias comuns de resolução, paralelamente às grandes preocupações atuais que enfrentamos, o rescaldo da COP 26 e os novos cenários que se avizinham com as alterações climáticas, a retoma da crise pandémica, a insegurança, o desemprego, os conflitos armados, o terrorismo, a crise migratória, as desigualdades e práticas discriminatórias, só para referir alguns. Mas nem sempre assim foi.

Durante muitos anos o combate à pobreza foi considerado um assunto acessório, onde o crescimento económico concentrava as prioridades das agendas à escala mundial sendo a preocupação fundamental para o desenvolvimento dos países.  Até finais do século XX a pobreza estava associada à falta de recursos económicos e às privações que derivam desta, sendo que a solução para o problema passava pelo crescimento económico e por ações que pontualmente iam sendo desenvolvidas. As ações de combate à pobreza estavam então assentes num modelo segmentado, assistencialista e reativo de respostas avulsas, baseadas na minimização de danos. Com falta de rigor, não necessitava, portanto, de intervenções sistematizadas por parte da sociedade, o que não permitia eliminar as causas estruturais da pobreza.

Novas formas de pobreza vieram agora afirmar-se e agravar uma situação que em alguns anos apresentou ligeiras melhoras. Estas coexistem com as desigualdades que aumentaram entre os países, as classes sociais e as pessoas. Hoje sabemos que a pobreza (e a exclusão social) não são fenómenos apenas característicos dos países mais pobres e que têm um caráter multidimensional.

Atualmente as Nações Unidas afirmam que “a pobreza envolve mais do que a falta de recursos e de rendimento que garantam meios de subsistência sustentáveis. A pobreza manifesta-se através da fome e da malnutrição, do acesso limitado à educação e a outros serviços básicos, à discriminação e à exclusão social, bem como à falta de participação na tomada de decisões”.

A cronologia de um longo caminho percorrido

Vários mecanismos de ação e proteção social foram sendo seguidos na Europa e em Portugal. Assistimos a um longo processo de definição e implementação de vários instrumentos de combate à pobreza e à exclusão social em Portugal, seguindo as diretivas europeias em vigor. Em 1990 é criado o Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza com a criação de Comissariados Regionais e enquadrado no III Plano Europeu de Luta Contra a Pobreza. A criação das Redes Sociais Locais deu-se em 1997, corporizadas nos Conselhos Locais de Ação Social (CLAS). No ano seguinte é constituída a Rede Europeia Anti Pobreza – Portugal. O ano 2000 deu início à implementação da iniciativa comunitária EQUAL. Nesse mesmo ano foi proclamada a Declaração do Milénio das Nações Unidas, tendo também sido adotada a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Ainda nesse ano, na Cimeira de Nice, passou-se a falar de inclusão, com a criação dos Planos Nacionais de Inclusão e entre 2001 e 2010, enquadrados pela Estratégia de Lisboa, foram definidos os Planos Nacionais de Ação para a Inclusão (PNAI). Pelo meio foram criados o Programa Escolhas e o PROGRIDE – Programa para a Inclusão e Desenvolvimento. Em 2007 seguiu-se um novo marco, com o Tratado de Lisboa e a assinatura do Tratado Reformador da União Europeia, dando também início a uma nova programação comunitária de apoio com o QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional). Nesse mesmo ano foram lançados os Contratos Locais de Desenvolvimento Social (CLDS), que ainda vigoram atualmente na sua quinta geração. Na sequência de uma petição nacional, em 2008, a Assembleia da República declarou por unanimidade a pobreza como uma “violação dos direitos humanos”, tendo sido uma importante conquista alcançada, onde a pobreza foi assumida não apenas como um problema social e económico, mas também como uma violação dos direitos humanos, assumindo a luta contra pobreza como uma causa nacional, expressa ao mais alto nível político.

Só em 2010 a meta de reduzir, pelo menos, em 20 milhões o número de pessoas em risco ou em situação de pobreza e de exclusão social, foi definida pela primeira vez pelo Conselho Europeu com a Estratégia Europa 2020 e nesse ano, 2010, foi proclamado o Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza. Em 2013 é aprovado o novo regulamento do Fundo Social Europeu (FSE). Este novo regulamento determinava que pelo menos 20 % do total de recursos do FSE em cada Estado Membro deviam de ser afetados ao objetivo temático “Promover a inclusão social e combater a pobreza e a discriminação”. Em 2014 foi criada a Iniciativa Portugal Inovação Social e em 2015 seguiu-se o POISE – Programa Operacional Inclusão Social e Emprego. E é nesse ano que as Nações Unidas adotam a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, onde os países se comprometem com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as suas 169 metas. A Erradicação da Pobreza corresponde ao Objetivo 1, abrangendo sete metas específicas.

Em 2013 o Banco Mundial estabeleceu uma nova meta para acabar com a pobreza: que não exista mais de 3% da população mundial a viver com apenas 1,90 dólares por dia até 2030, tendo posteriormente acrescentado em adenda que não somente o rendimento per capita diário e o acesso a serviços básicos são determinantes da pobreza, mas também aspetos como a fome, a discriminação e a exclusão social.

Na Europa, e mais concretamente na Estratégia Europa 2020, propôs a meta de redução de 20 milhões de pobres até 2020. No entanto esta não foi aceite por todos os Estados Membros e o consenso foi estabelecido para a redução de 12 milhões.

Os países signatários das Nações Unidas estabeleceram como meta reduzir pela metade (50%) a proporção de homens e mulheres que vivem na pobreza extrema até 2030. E até 2030, erradicar a pobreza extrema em todos os lugares, atualmente medida como pessoas que vivem com menos de 1,25 dólares por dia.

O panorama da pobreza: a persistência da pobreza e das desigualdades no Mundo e em Portugal

Apesar de tudo o que foi feito até então, com uma sucessão de políticas sociais pela Europa e pelo Mundo, a verdade é que a pobreza persiste, as causas estruturais da pobreza não foram resolvidas; as pessoas continuam pobres e vulneráveis. Na verdade, o que está em causa são múltiplas dimensões. Não é um caminho a dois, ou a três. Por essa razão não se consegue falar em pobreza sem falar nas desigualdades.

Segundo a OXFAM (2018), no final da última década, mais 700 milhões de pessoas poderiam ter saído de uma situação de pobreza extrema se tivessem existido políticas concertadas de redução das desigualdades, e não apenas de redução da pobreza.

Mas analisemos alguns dados sobre a realidade da pobreza em Portugal e no Mundo.

Segundo dados publicados pelo Eurostat, cerca de um em cada cinco cidadãos (21,9%) da União Europeia, correspondendo a 96,5 milhões de pessoas, encontrava-se em risco de pobreza ou de exclusão social, registando um aumento de 21,1% em relação a 2019. Portugal situa-se nos 20%, revelando a existência de cerca de dois milhões de pessoas em risco de pobreza e exclusão social.

O limiar da pobreza, o valor abaixo do qual alguém é considerado pobre em Portugal é atualmente de 540 euros, tendo sido a atualização da referência anterior de 501,16 euros. Este valor foi convencionado pela Comissão Europeia como sendo o correspondente a 60% da mediana do rendimento por adulto equivalente de cada país.

As conclusões do estudo “Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos“,  com dados de 2018, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e coordenado pelo investigador Fernando Diogo, reportam que um em cada cinco portugueses é pobre e 11% dos trabalhadores encontram-se em situação de pobreza, significando que a remuneração auferida é muito baixa e não chega para fazer face às despesas do agregado. Os dados do estudo apontam para mais de 1,7 milhões de pessoas no país que estão em risco de pobreza, onde a taxa de pobreza infantil “é persistentemente mais elevada do que a taxa global”. Alertam também para a triste realidade a situação de pobreza dos pensionistas, os quais representam um terço das pessoas pobres em Portugal.

Porém todos estes dados foram recolhidos e tratados antes do início da pandemia. Sabemos que a pandemia de COVID-19 piorou todas as situações e as pessoas mais vulneráveis foram as mais atingidas, com o aumento do desemprego e o agravamento das condições de vida. Conhecemos o seu impacto abrangente e a realidade do aumento generalizado dos preços dos bens, da habitação e o aumento dos combustíveis que afeta toda a sociedade, acentuando as fragilidades sociais.

Um futuro mais justo, mais sustentável e menos desigual?
A Estratégia

A versão preliminar da  Estratégia Nacional de combate à Pobreza foi aprovada a 30 de setembro de 2021, tendo sido colocada à discussão pública até 25 de outubro. É uma das reformas integrantes no Plano de Recuperação e Resiliência e com enquadramento na Estratégia Portugal 2030. A nível europeu, esta Estratégia encontra-se assente na contribuição para a meta do Pilar Europeu dos Direitos Sociais que compromete a União Europeia a reduzir o número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social em 15 milhões até 2030 e que destas 5 milhões sejam crianças. O Pilar define 20 princípios e direitos fundamentais, que se articulam em torno de três categorias:  igualdade de oportunidades e acesso ao mercado de trabalho, condições de trabalho dignas e proteção e inclusão sociais.

Que linhas são as orientadoras para um instrumento esperado ser inovador, inclusivo e de resposta eficaz face à mudança rápida no contexto da crise social e económica gerada pela COVID-19?

Os eixos prioritários de intervenção da estratégia são compostos por seis dimensões: reduzir a pobreza nas crianças e jovens e nas suas famílias, promover a integração plena dos jovens adultos na sociedade e a redução sistémica no seu risco de pobreza, potenciar o emprego e a qualificação como fatores de eliminação da pobreza, reforçar as políticas públicas de inclusão social, promover e melhorar a integração societal e a proteção de pessoas e grupos mais desfavorecidos, assegurar a coesão territorial e o desenvolvimento local, fazer do combate à pobreza um desígnio nacional.

Mas será esta uma estratégia duradoura e coerente com o contexto europeu e outras estratégias de âmbito nacional, com contributo um contributo para a proteção das pessoas mais vulneráveis, nas atuais transições verde e digital a decorrer?

Mais do que números – Como quebrar o ciclo da pobreza?

Este instrumento tem garantindo um conjunto eixos para a redução das desigualdades nas áreas do emprego, defesa dos rendimentos e concretização dos direitos sociais, tendo em conta as especificidades das pessoas em situação de vulnerabilidade e de cada território, assegurando a cooperação dos vários atores da sociedade, incluindo a componente intersectorial.  Contudo, à semelhança com o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, continua a consistir num conjunto de orientações, ao invés de assumir um formato vinculativo, com uma atribuição clara dos responsáveis diretos, com obrigações que possibilitem um verdadeiro compromisso para garantir os direitos e o cumprimento da meta europeia. 

Parece evidente a ausência de um modelo participativo, assente na auscultação das pessoas mais vulneráveis e também das organizações do Terceiro Setor, onde desde logo se evidencia a importância da elaboração de um diagnóstico nacional, espelhando as novas realidades e explorando as maiores barreiras existentes na sua intervenção. Este ponto tem sido amplamente defendido pela EAPN – Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal. Pressupõe, portanto, a sua participação ativa desde a auscultação, passando pela implementação de um futuro Plano de Ação, assim como na sua avaliação. O reforço da cidadania e a participação da sociedade civil são condições essenciais para responder, trabalhar e avaliar as políticas que lhes dizem diretamente respeito. Implicará a criação de mecanismos de participação com estratégias e instrumentos inclusivos, num processo de co-construção, contribuindo para uma maior e mais forte apropriação por todos os atores relevantes. Como exemplo de uma boa prática implementada já há duas décadas, o Banco Mundial no seu Relatório Anual de 2000/2001 decidiu dar voz às pessoas mais pobres para exprimirem e caracterizarem as suas próprias situações, a partir de 60 mil testemunhos recolhidos em 73 países.

No global o documento carece de uma meta concreta, adaptada à realidade específica de Portugal e torna-se abstrato em alguns eixos pela ausência de objetivos específicos e mensuráveis, pela omissão de como será a sua operacionalização. São esperadas ações concretas, objetivos específicos, resultados esperados e impactos, com a formulação de indicadores, sejam para a monitorização, sejam para a avaliação de resultados e de impacto. Nos objetivos estratégicos, no seu ponto 6.2.2, afirmam que é necessário implementar um mecanismo sistemático e eficaz para considerar o impacto das medidas (e políticas públicas) na redução ou aumento da pobreza, recorrendo às evidências que sustentam a prestação de contas (a consequente “poverty proofing”). A avaliação de impacto centrará toda a ação nos seus beneficiários e na medição das suas mudanças efetivas e irá nortear toda a operacionalização dessas medidas. Paralelamente, a capacitação das partes interessadas, dos agentes e técnicos envolvidos para aquisição de competências em avaliação de impacto, será uma peça essencial para uniformizar a linguagem e a atuação nas diversas iniciativas. Permitirá assim melhorar a eficiência, a eficácia, a sustentabilidade, trazendo um maior rigor e mais valor para a sociedade, ou seja, uma maior justiça social.

Com relevância é apresentada a questão da dimensão e duração das ações e projetos decorrentes da implementação da Estratégia. Há a necessidade premente de serem concebidos programas mais estruturados, de longo prazo, com financiamentos sustentáveis, sendo fundamental canalizar os recursos para onde são mais necessários. É fundamental evitar os já anteriormente desenvolvidos projetos de muito curto prazo, sem possibilidade de continuidade ou de medição de impacto, implementados grande parte das vezes para dar cumprimento à dotação orçamental, ao remanescente dos financiamentos. E se estamos a querer atuar sobre causas estruturais, as respostas terão necessariamente de corresponder em idêntica medida, ao serem dadas de forma mais sólida, agregada, sustentável, funcionando como propulsores do processo de transformação. Só desta forma se conseguirá estratégias consistentes e soluções mais duradouras e impactantes, com impacto sistémico. Com as crises de COVID-19 e a migratória, como exemplos, esta torna-se uma questão ainda mais urgente.

Será também importante refletir porque, sendo o sexto eixo estratégico “Fazer do combate à pobreza um desígnio nacional”, o ODS 1 – Erradicar a Pobreza, em Portugal não é considerado um dos prioritários? Os ODS prioritários para Portugal são os ODS 4 (Educação de qualidade), 5 (Igualdade de género), 9 (Indústria, Inovação e Infraestruturas), 10 (Reduzir as Desigualdades), 13 (Ação Climática) e 14 (Proteger a Vida Marinha). (Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2017) 

Importa por último, a realçar a importância da criação de regras sociais, defendido pela Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen “Um conjunto de regras que assegure a solidariedade entre gerações. Um conjunto de regras que recompense os empresários que zelam pelos seus trabalhadores. Que se centre no emprego e abra oportunidades. Que coloque as competências, a inovação e a proteção social em pé de igualdade”. (Discurso ao Parlamento Europeu, 20 de janeiro de 2021)

Não havendo estas questões resolvidas, continua a ser seguido um conjunto de (boas) intenções, à semelhança das anteriores estratégias. E o combate à pobreza é fundamentalmente uma questão de direitos humanos, interligando-se com todos os vários setores, sejam políticos, económicos, sociais, ambientais ou culturais. Continuaremos a viver numa sociedade onde a desigualdade condena e abandona os mais pobres, onde a indiferença e discriminação se afirmam, onde não existe o respeito pelos direitos humanos e o exercício pleno dos direitos e deveres de cidadão. E a pobreza afeta a autoestima, afeta a dignidade do ser humano, afeta toda a sociedade. A grande questão é que não se trata de nós e os outros. Não há um muro que nos separa. Estamos todos interligados, conectados. Esta interdependência social e humana faz-nos perceber o caráter sistémico da pobreza e de todos os fenómenos associados nas nossas vidas, nas nossas famílias, na nossa sociedade.  

 

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